Invisibilidade infantil: a marginalização da pouca idade



A existência das crianças na sociedade é um fato incontestável, no entanto, a consideração da infância como categoria social surge apenas na Modernidade com a emergência da escola e da família como instituições sociais, quando houve a devida consideração e reconhecimento sobre como o pouco tempo de vida de um ser humano merecia uma denominação própria e atenção diferenciada.

Durante a Idade Média as crianças não recebiam qualquer tratamento especial: na realidade, mal recebiam atenção. A constituição familiar se mostrava diferente, tratando-se de pessoas com propósitos de sobrevivência em comum que compartilhavam pouca ou nenhuma afetividade apesar dos laços de sangue. Neste momento histórico, Philippe Ariès (1914-1984), no livro História Social da Infância e da Família sublinha que crianças eram vistas como seres biológicos desprovidos de razão, considerados como pequenos adultos ou futuros adultos que não possuíam qualquer autonomia sobre qualquer coisa e por isso simplesmente participavam da vida ativa dos adultos sem maiores considerações sobre sua pouca idade. 

O processo de construção do ser infantil está atrelado aos processos de desenvolvimento da estrutura social. A Modernidade transformou os seres biológicos sem designação especial em um grupo geral de determinadas características comportamentais e gostos relacionados a uma suposta imaturidade que ajudariam a definir como as crianças poderiam ser importantes para o desenvolvimento do quadro social ao mesmo tempo que administra sua atividade na sociedade.

O truque do “surgimento” da infância encontra-se nas normas restritivas dirigidas às crianças na sociedade contemporânea. Embora haja o reconhecimento da necessidade de cuidados e atenção para os chamados futuros adultos, uma observação mais vigilante indica o escanteio e marginalização da pouca idade, colocando-as em posição de submissão. Os poucos anos ainda são sinônimo de pouca maturidade e nenhuma racionalização, sendo os adultos responsáveis por construir o caráter da criança, determinando quais lugares são permitidos, que tipo de comida se deve comer, as horas consideradas aceitáveis para interagir e, principalmente, a recusa em permitir a participação infantil na coletividade, o que podemos considerar como sendo um modo da estrutura social constranger e invisibilizar as crianças.

A premissa de construção da infância ignora como as crianças são contribuintes para a movimentação e produção cultural, bem como para a mudança social, uma vez que elas apresentam suas próprias maneiras quando postas no coletivo, afastadas das figuras de autoridade: maneiras de negociar e compartilhar que, embora possam ser consideradas reprodução de aprendizado, também demonstram desenvolvimento comportamental e/ou emocional próprio, ou seja, embora precisem aprender, ainda são capazes de demonstrar reações a certas situações sem conhecimento prévio de como seus responsáveis reagiriam — como em casos de pais racistas com crianças que não reagem da mesma forma, pois possuem um tipo diferente de compreensão sobre o ser humano neste ponto da sua vida.

É possível compreender as crianças como participantes bilaterais na estrutura social, uma vez que afetam e são igualmente afetadas pela sociedade: “As crianças são agentes ativos que constroem suas próprias culturas e contribuem para a produção do mundo adulto”. (Corsaro 1997, p.5).

Dentre as ciências sociais, a ciência política foi a que menos se ocupou durante um tempo dos debates relacionados à infância, no entanto, vem ocorrendo um crescente movimento em que se pauta pensar não somente os direitos das crianças, mas suas possibilidades de atuações como cidadãs, quebrando um quadro em que só se pensava a criança na política dentro de um processo de socialização à política ou politização, que marcava a caminhada daquele indivíduo para a inserção dessas atividades. O preparo para a votação. 

Esse tipo de pensamento que se materializa em estruturas sociais que determinam quais indivíduos possuem competência e maturidade para participar do processo político, reforça a leitura que nos conta sobre o afastamento da criança das centralizações dos debates e as decisões que deles surgem. A todo instante existe um esforço imenso não somente para manter esses sujeitos afastados do ordenamento, mas também para sustentar a construção do ‘‘mundo à parte”, aquele infantil, naturalizado como o mundo em que as crianças devem fazer parte e que não corresponde ao mundo problemático e cruel dos adultos, onde executam seus papéis que contam quais possíveis adultos elas serão. 

A Convenção Internacional da ONU prevê alguns artigos sobre infância/criança que versam sobre a proteção, sobre a necessidade de prover elementos fundamentais e sobre a possibilidade de participação desde que seja por algo que lhe atinge. Veja: ser tema não significa que o sujeito esteja sendo contemplado. As limitações são gigantes na medida em que é tirada das crianças qualquer possibilidade de pensamento livre. Tudo é deliberado por outros, sem que aqueles atores em específico estejam sendo vistos em suas existencialidades. A corporificação de uma criança é minada antes mesmo que ela possa estabelecer qualquer pensamento. Que derrubem os juízos de valor e se perguntem: o que temem os adultos de ouvir das crianças sobre suas performances? É inegável a importância de uma socialização desse indivíduo juntamente com a política, porém, muito mais que isso, é de extrema importância que as crianças sejam vistas considerando suas espacialidades, e não somente usadas como instrumentos para projeções futuras. Aqueles que carregam em si o peso do futuro precisam falar sobre suas dores. 

A antropologia afia seus olhares em relação à infância desde muito tempo, ela que se ocupa em compreender o fenômeno em seu contexto social e cultural, busca na infância e consequentemente produz uma vasta coleta de dados, analisar os atos performativos das crianças que revelam significantes sobre a vida social e o que de fato é ser criança. 

Desde a década de 1960, estudos inovadores permitiram que conceitos caros à área fossem dilatados na medida em que eram postos à luz da infância. Conceitos como cultura, que em investigações em lugares feitos para as crianças, foi possível perceber como elas facilmente subvertiam os espaços, as brincadeiras, criando novos arranjos a depender do contexto e provocando a consolidação dessas transformações. Construíam uma autorrealidade, uma realidade social a partir das representações sociais nas trocas entre si. 

Pensar na elaboração de representações sociais, estudo que surge na psicologia, nos fala sobre dois processos interessantes: a objetificação que possui a função de corporificar uma ideia, e a ancoragem, que torna aquilo que é desconhecido em algo familiar à compreensão dos indivíduos envolvidos, significando, portanto, que pensar nas representações que as crianças constroem cotidianamente em suas realidades sociais, é levar em consideração a relação entre sujeito e objeto. 

Facilmente foi percebido por muitos antropólogos da infância, nos estudos de cognição social, que quase que não existiam limites para o poder de criação daqueles indivíduos. O que nos leva para outros dois conceitos, o da agência, que revelava que o indivíduo apesar de estar submetido a regras e normas, existia em si um provocar capaz de subverter aquilo já estabelecido, entreguem um brinquedo para um grupo de crianças e mesmo que elas saibam ou não ler o manual, elas podem prontamente decidir criar suas próprias regras. 

Na psicologia dentro da abordagem gestáltica do self, esse conceito é esclarecido como mudanças constantes, tais quais explicam um ser humano que ainda não tem estabilidade de comportamento, pensamentos e desejos. A infância é carregada dessas alterações, porém existe a carga que os adultos depositam nas crianças, traves de impedimento no caminho para chegar a um auto-conceito sobre si mesmas. Ao invés disso, os pais destinam um self-ideal para elas ao criar expectativas sobre as vidas infantis como se fossem extensão das próprias, que as direciona a uma definição delas mesmas diante esse self-ideal.

O direcionamento adulto chega a possibilitar uma aceitação e uma transformação em relação ao que as pessoas ao redor querem da criança, o que pode distancia-las de possíveis realizações próprias. Esse fator acaba evidenciado quando surge o debate das questões profissionais, no qual os pais despejam suas ambições não realizadas em seus filhos, abrindo portas para um futuro no qual essa criança venha a se tornar um adulto insatisfeito com o que faz. Em muitos casos, ir de encontro a imposição dos pais é considerado um ato de rebeldia, no entanto, essas imposições podem reverberar nos “futuros adultos” das mais variadas formas, tanto no âmbito particular quanto no social. Seriam então as crianças/jovens reflexo do modo como seus pais queiram que elas sejam?  O individuo é um ser em potencial que carrega consigo uma subjetividade própria, ou seja, um ser único que no processo de construção do eu é um ser-no-mundo que está intrinsicamente ligado a fatores sociais. 

A segregação por idade, além do não levar a sério a criança com suas opiniões, também as ausenta de responsabilidades, criando um quadro onde os seres humanos em idade de infância sejam considerados mais responsabilidades do que responsáveis. É muito comum ouvir frases prontas como “não liga para o que ela diz, é criança”, ignorando que criança pode sim apresentar comportamentos tanto positivos, como no caso de crianças que não correspondem a pais racistas, por exemplo, quanto negativos, como crianças que correspondem sim aos preconceitos do pais, mas são absolvidas de culpa tendo como justificativa sua pouca idade e a suposta inocência, abdicando uma explicação que, mais adiante, irá refletir sobre aquele futuro adulto. Contudo, é viável discutir determinados assuntos com a criança e a abordagem da educação humanista é um caminho para isso. Através dela se torna possível levar a sério a criança sem molda-la, sem negligencia-la e ainda ajuda a desenvolver suas potencialidades. 

Considerando uma vivência em grupo, a ação social desses indivíduos demonstra o modo como elas se relacionam entre si, de jeito a assumirem papéis que são performatividade dos adultos quando diante de crianças menores assim como uma forte coesão. Elas atritam entre si, mas são capazes de solucionar os seus próprios conflitos. Percebendo isso, a antropologia tem revelado cada vez mais que diferente dos adultos, as crianças se encontram em si e em outras crianças. Elas criam, recriam, estruturam, subvertem, mas raramente são vistas por suas potencialidades. Os adultos só conseguem enxergar os “adultos em potencial”, e não crianças como seres do presente. 


AUTORES: 
Heloisy Tinel
João Alves
Mateus Borges
Thaís Nunes


REFERÊNCIAS:
AGUIAR, L. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. Summus. 2015.

AMATUZZI, M.M. Rogers: ética humanista e psicoterapia. Alínea. 2010.

Ariès, Philippe — História Social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. 2a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

Cohn, Clarice – Antropologia da Criança. 1ª ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. 

Qvortup, Jens – Infância e Política. Tradução de Fátima Murad. Suécia, 2010. 


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