Gênios de berço: uma herança social
Seguindo a linha de
pesquisa de Vygotsky, onde a inteligência, genialidade, criatividade e/ou
talento advém não de uma herança parental, geneticamente transmitida, e sim de
fatores ligados ao desenvolvimento do indivíduo em seu âmbito social, poremos
em questionamento as concepções meritocráticas de nossa sociedade. Barbosa (apud
HELAL, 2007) define a meritocracia “como um conjunto de valores que postula que
as posições dos indivíduos na sociedade devem ser consequência do mérito de
cada um. Ou seja, do reconhecimento público da qualidade das realizações
individuais”. No tempo vigente, a ideologia da meritocracia é a justificativa
utilizada para a continuidade da estratificação social – manutenção do sistema
de classes, com privilégios passados hereditariamente.
Um ideologia é, segundo
Sousa Filho (2003), um sistema de ideias com um viés, que é constituinte e
construtor da cultura, e a qual é atribuída um caráter de naturalidade,
universalidade, divindade e eternidade. Aqueles que estão inseridos na cultura,
geralmente encontram-se num estado de alienação, ou seja, não estão
conscientes de que estão inseridos nesse sistema, que são reprodutores desse
conjunto de ideias que são, por definição, inquestionáveis.
É esse o caráter que a
meritocracia assume em nossa sociedade. Seu discurso foi tão bem construído
socialmente que se torna cada vez mais dificultoso questioná-lo. Esse debate,
no entanto, se faz urgente, uma vez que a ilusão de uma sociedade meritocrática
é um agente decisivo para a manutenção da estrutura social como ela tem sido há
muito tempo.
É fácil se deixar
enganar pelo discurso meritocrático à primeira vista. Parece fazer sentido que
aqueles que trabalham mais, que mais se empenham, devem ser retribuídos por
isso. As coisas mudam de figura, no entanto, quando abrimos a lente e enxergamos
a amplitude e complexidade da realidade social brasileira.
É incorreto, desleal
até, colocar em pé de igualdade para competir, pessoas de classes sociais
extremamente distintas.
Vélez (2018), em seu
extenso questionamento do termo meritocracia e a forma como esse é usado, reflete
sobre como essa competição é injusta. Para que se possa premiar alguém em detrimento
de outro por seu esforço e empenho, é necessário que ambos tenham tido as
mesmas oportunidades e os mesmos pontos de partida, o que, é claro, não
acontece na prática.
Em sua situação de
vulnerabilidade social, um menino pobre, muitas vezes sem a presença paterna,
estudante das escolas públicas deterioradas, subnutrido, exposto a violência de
sua comunidade marginalizada e sem ter acesso sequer a um saneamento básico,
não tem o mesmo aparato que as crianças da classe média, com seus colégios
particulares, suas babás, suas aulas extracurriculares: inglês, natação, balé, taekwondo...
Pesquisas apontam que,
embora não haja uma relação direta entre genes e inteligência, existe algo que
é passado, sim, de pai para filho, e que é fundamental para que surja o tão
mistificado gênio: capital – tanto o monetário quanto o cultural.
Bourdieu (apud HELEL,
2003) define o capital cultural como a rede de contato, de conhecimentos
adquiridos no meio social. Uma criança exposta a todo momento a diversos estímulos
sensoriais e cognitivos irá, obviamente, se desenvolver melhor, enquanto aquela
que foi privada de tudo irá padecer para chegar ao mesmo nível que a anterior
algum dia, com algum tempo de atraso.
Os gênios não surgem do
nada. Não há, comprovadamente, uma loteria genética, que faz de alguém superinteligente
e criativo, tornando-se, com o passar do tempo, quase sacro aos olhos da
sociedade. Não devemos destituir essas pessoas de seu mérito por ter criado,
resolvido problemas, fazendo máximo proveito do aparato que lhe foi oferecido,
mas saibamos enxergar que não passa disso: aproveitar o que lhe foi dado.
Esse cenário onde os
mais privilegiados socialmente podem prover aos seus todo o aparato que
precisem, enquanto crianças socialmente vulneráveis são privadas do que lhes é
mais básico (comida, escola, um núcleo familiar estável) só serve para
perpetuar as formas de dominação que existem há séculos e que não parecem próximas
de mudança.
A meritocracia é uma
ideologia falida porque sempre sabemos quem vai ganhar a corrida, e crianças
ávidas para descobrir e criar, crianças que poderiam inventar a cura da Aids,
reverter o aquecimento global, ganhar mais medalhas que Michael Phelps ou
esculpir o próximo Davi, nunca nem estiveram no páreo
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