Construção do self e possíveis relações de incongruência

Por Abdiel Oliveira e Mércia Costa


Segundo Carl Rogers, nos primeiros anos de vida, a realidade para os indivíduos se resume à sua experiência que é acompanhada por um processo avaliativo do mundo nos seguintes critérios: o que se percebe sensorialmente como algo agradável é atribuído um valor positivo e o que não é percebido como agradável, o contrário. Rogers chamou esse processo de “avaliação organísmica”, quando o indivíduo guia a sua ação a partir de como experiência (vive, experimenta) o mundo no aqui e agora. Por ocasião da interação entre o indivíduo e o contexto em que vive, uma parcela desta experiência se desdobra em “experiência de si”, fazendo com que este, então, crie uma “noção de eu”, a partir da qual, também irá guiar suas ações.  Assim sendo, entender como os sujeitos do transtorno do espectro autista percebem e assimilam a realidade que os cerca também pode ser crucial para a criação de intervenções que impulsionem o desenvolvimento, tanto no contexto clínico quanto escolar, possibilitando melhores condições de vida e de interação social. Atrelado a isso, descreveremos a vivência de ser autista e a constituição do self com base em uma abordagem qualitativa sobre a série Atypical e a vida real com referencial fenomenológico-existencial e humanista Rogeriano. De antemão é importante ter em mente que o autismo é pessoal e individual para cada pessoa diagnosticada.




Como já mencionado o protagonista da série Samuel é um garoto autista de alto desempenho e deseja ter uma namorada, a partir disso, a série se desenrola nas relações dele para conseguir seu objetivo e como as pessoas ao redor, como por exemplo, sua família lida com isso. Com base no conceito de Carl Rogers de Self, não cabe a nós, pesquisadores, inferirmos qualquer coisa sobre como o personagem Samuel Gadner é. Nesse sentido, a análise será estritamente pautada em explanações do próprio personagem sobre si ao decorrer das temporadas.




É interessante observar que logo nos primeiros episódios Sam retrata-se como alguém esquisito, sozinho, e que não entende muitas coisas que as pessoas falam e nunca vai ter uma namorada ou ir à Antártica. Em paralelo com a ficção temos o depoimento de Débora Moreira, jovem de 26 anos, sobre sua experiência pessoal em um vídeo de seu canal que nomeou com seu próprio nome, para fins de conscientização do Autismo, ela relata que a questão do processamento sensorial, para ela é o ponto chave, pois é o que mais gera crise – como vemos em muitos momentos no começo da série, inclusive o Sam usa um fone como inibidor de ruídos, para conseguir controlar na medida do possível suas crises – é o que mais a atrapalha em seus relacionamentos, a perceber o mundo, a interpretar as coisas e a se expressar. Além disso, na série Sam aponta diversas qualidades e defeitos, como adorar pinguins, pesquisa, regras e odiar gatos, toques fracos, não gostar de dançar; ambientes barulhentos, entre outros. Porém, segundo Rogers, pessoas de suma importância para o indivíduo impactam diretamente a sua definição de autoconceito. Isso pode ser visto na série com facilidade. Por exemplo, Julia - a psicóloga do Samuel - diz que pessoas no espectro conseguem namorar. Inicia-se a jornada de conquistar uma namorada. Inclusive, ele consegue alguns encontros infelizes, mas, antes de voltarmos para a análise do self, é importante salientar alguns aspectos de incongruência do Sam e como isso causa sofrimento para ele. Atrelado a isso,  uma menina aparece na Techtropolis – lugar onde o Sam trabalha – e é movido pelo seu melhor amigo, Zahid, a chamá-la para sair, ele a convida e tudo começa a ir bem, mas quando chega à hora da relação sexual ele não gosta de toques fracos, mas quer transar e acaba a deixando toca-lo levemente, depois fica muito incomodado, empurra a menina e ela xinga ele: “ - Você é retardado? Tem problema no cérebro?”. Ele corre pra casa e tem uma crise.

Dentro do processamento sensorial também esta a questão do contato físico, onde Débora Moreira conta um relato da sua infância, que seus pais lhe contaram que com dois/três anos de idade, ela batia nas pessoas que tentavam brincar com ela, envolvendo esse contato físico, ou seja, ultrapassar o limite estabelecido por ela. . De volta ao palco do Self, Samuel após passar essas situações, mais especificamente o último encontro citado, conversa com seu pai chamado Doug e ele o aconselha procurar alguém que gostasse dele do jeito que ele é então Sammy tem um novo destino, conquistar a sua psicóloga, mas quando ele pesquisa no colégio sobre como roubar uma garota e acaba ouvindo a infeliz frase de que ele não é normal, porém, mesmo triste, ao chegar a casa, aquele menino que concordava com a opinião dos outros de que era esquisito agora fala pro seu pai que é normal. A terapeuta na primeira temporada tem um papel fundamental em tornar conscientes questões que o Sam não havia se questionado, como por exemplo, em sua sala, Julia diz que o Sam é independente e consegue escolher algumas coisas. Posteriormente, em várias ocasiões como veremos a seguir, mesmo havendo uma desilusão amorosa com ela, ele mantém a concepção sobre si. E mais uma vez em paralelo com a realidade, uma das coisas que mais ajudaram a Débora a desenvolver seu self foi à arte marcial do taekwondo que conheceu aos 11 anos, pois estava acima do peso e estava procurando um esporte para reverter essa situação, infelizmente seu diagnostico tardio lhe expos a muito sofrimento, pois a mesma passou por depressão e teve vontade de suicidar-se aos 17 anos, ela relata que não foi exposta a coisas mais prejudiciais ao corpo, mas que sua mente tava totalmente perturbada e tudo isso por não ter um acompanhamento de um profissional e ela fala que o taekwondo foi o divisor de águas para ela procurar o diagnostico, pois ela já suspeitava, mas nunca externou seu questionamento. Débora ainda cita que “O esporte ele é fundamental pra autoimagem, você se ver diferente, a partir do momento que você consegue fazer coisas diferentes, você pensa assim ‘Ah eu não sou tão coitada assim’ porque a deficiência trás essa realidade e o esporte te possibilita a ver horizontes, não ficar preso ao diagnostico, ao rotulo, a aquilo que as pessoas pensam que você tem que ser porque você é autista, mas você não pode se limitar por causa disso, é você quem faz, você quem se limita, então é uma luta contínua com você mesmo.”

Por conflitos de interesses, na segunda temporada Sammy está sem psicóloga, mas isso não o impede mais de ser independente, inclusive vai atrás da terapeuta desobedecendo a uma regra da mãe – e ele adora regras –. Além disso, podemos conhecer mais um pouco sobre o Self do personagem quando ele começa a participar de um grupo de autistas. Por exemplo, nunca faltar um compromisso, saber dançar e conhecer todas as espécies de pinguins. Inclusive, ele diz que sempre completa os rituais. Nesse mesmo grupo, surge à pauta de entrar na universidade e ele nunca tinha pensado nessa possibilidade, nem mesmo sair de casa. No entanto, com suas próprias palavras Sam diz: “Se eles conseguem, eu também consigo, vou fazer faculdade!”. Inclusive, no ultimo episódio, mais especificamente na cena do jantar com os pais, ele afirma que precisa ser mais independente para se preparar para a faculdade e pede para seus pais não o ajudarem nos afazeres domésticos. Outro fator interessante é que diante da escolha de faculdade, a orientadora da escola pede para ele escrever sobre o autismo e o quanto que ele conseguiu conquistar sendo autista, no entanto Sam diz: “Ter autismo não é uma conquista, eu nasci assim.”, confirmando a identificação do autismo não ser uma dificuldade para ele e sim normalidade. Atrelado a isso, na escola ele pede para desconhecidos assinarem o anuário, mas encontra sarros do quanto ele é esquisito e estranho, obviamente, ele sente um alto desconforto, mas diz uma frase especial: “Preciso fazer o que me comprometi, sou independente e vou resolver mesmo sem querer resolver.”, já que sempre que surgia um conflito ele recorria a sua irmã para ajuda-lo. Podemos até inferir congruências não só nessa cena, como também quando ele diz que não gostava de falar em público, e aos quatro anos fez xixi na calça. No entanto, ele levanta e faz o discurso por Paige – sua namorada – na formatura ao passo que na primeira temporada havia várias incongruências e causavam sofrimento com situações semelhantes. Alguns tópicos anteriores eu mencionei que o personagem explana que nunca ia conseguir uma namorada e era muito ruim no amor, já nessa terceira temporada ele não só consegue namorar como também afirma que é muito bom nisso. 

No início dessa temporada ele mantém sua rotina constantemente para se sair bem no ambiente universitário. Inclusive, em um trabalho para descobrir a essência do pinguim ele nos revela mais um pouco sobre si “Eu sou consistente, essa é minha essência, sou parecido com os pinguins eles lutam e enfrentam e perseveram as adversidades todos os dias e isso permanece”. Entretanto, ao iniciar o curso de ética, ele encontra diversas dificuldades em entender o conteúdo e acaba recebendo uma nota zero no seminário de diálogo socrático. Ele fica arrasado, porém depois de um debate com a namorada do Zahid ele percebe que é possível tirar uma nota melhor na prova posterior, e como previsto tira nota sete. Atrelado a isso, um evento muito ruim para o Sam impacta diretamente seu autoconceito: a separação entre ele e o Zahid, depois de muito tempo separado, Sammy consegue reatar a amizade. Diante dessas situações e de outras ele percebe a falta de hospitalidade do homem. “Ética no início foi sem sentido, por que não existe resposta correta ou errada. Mas aprendi muita coisa, principalmente sobre mim. Sobre o que são mudanças certas e erradas, tudo muda, dependendo das coisas e das pessoas que você ama. E mesmo quando algo parece difícil ou perigoso a casos em que isso não importa.”

Conclusão:
Portanto, é de suma importância que a família ou pessoas próximas de indivíduos diagnosticados com o espectro autista tenham em mente que eles são os principais influenciadores para a construção de seu self O diagnostico precoce e acompanhamento profissional multidisciplinar também é indispensável para o inicio do desenvolvimento das habilidades dessa pessoa, mas acima de tudo é necessário levar em consideração que suas ações interferem nele e que tentar muda-lo ou encaixa-lo no que é esperado pela sociedade só gerara sofrimento, pois como sabiamente cita Luigi Epiphanio Venturoli “O mundo é bom por causa das diferenças”.



REFERÊNCIAS:
CAMILA MOREIRA MAIA, I. M. P. G. E. J. F. M. J. UM DIÁLOGO SOBRE O CONCEITO DE SELF ENTRE A ABORDAGEM. Nufen, São paulo, v. I, n. 2, p. 35-40, 01 Novembro 2009. ISSN ISSN.

G.E.VENTUROLI, P. youtube. A LUZ AZUL, 2016. Disponivel em: <https://www.youtube.com/channel/UCz1kideAwBpakJw79fjYwOw/videos>. Acesso em: 11 Janeiro 2020.

SILVA, A. N. D. S. E. J. B. D. Desenvolvimento cognitivo da autoconsciência em indivíduos com. Brazilian Journal of Development, Curitiba, 01 janeiro 2020. 10.

MOREIRA,D.youtube.PECULIAR(MENTE), 2019. Disponivel em:
https://www.youtube.com/user/MsDeboramoreira/videos. Acesso em: 12  Janeiro 2020.
Rashid,R.Netflix.Atipycal,2017.

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